
Por mais de quatro décadas, Glória Perez foi uma das vozes mais corajosas da teledramaturgia brasileira, abordando temas espinhosos como tráfico humano, intolerância religiosa, crimes virtuais e identidade de gênero em horário nobre. Mas, desta vez, o embate não se deu nas telas — e sim nos bastidores.
A autora decidiu romper o contrato com a TV Globo após a emissora vetar sua nova novela, “Rosa dos Ventos”, antes mesmo de sair do papel. A informação é da colunista Carla Bittencourt, do Portal Leo Dias.
A trama, que pretendia suceder o remake de "Vale Tudo", enfrentou resistência da cúpula da Globo por abordar um tema delicado: aborto — mais precisamente, um aborto forçado cometido contra a protagonista. E não se tratava de mais um dramalhão sobre escolhas difíceis, mas sim de uma denúncia frontal à violência reprodutiva, prática ainda silenciada e pouco representada na ficção nacional.

Na história, Cibele, uma ex-miss em decadência social, se vê seduzida por Murilo, um empresário casado com uma política em ascensão, Mabel. Após engravidar e acreditar que o filho selaria seu retorno ao glamour, Cibele é traída de forma brutal. Drogada por Murilo, ela sofre um aborto contra sua vontade. O que se segue é uma jornada de justiça e vingança — e a exposição de uma ferida aberta na sociedade brasileira: o controle sobre os corpos femininos.
Apesar de já ter capítulos pré-aprovados, a novela foi arquivada. Segundo Perez, a decisão da emissora foi justificada como “inadequada às novas diretrizes das novelas”. Sem aceitar reescrever a sinopse para suavizar o conteúdo, a autora preferiu encerrar sua parceria com o canal onde construiu uma carreira consagrada. “Tudo de comum acordo”, escreveu ela nas redes sociais. “Mas nesse momento prefiro assim, quero viver esse tempo no 'deixa a vida me levar'".
A recusa da emissora em levar ao ar “Rosa dos Ventos” não passou despercebida. Em tempos de debates acalorados sobre direitos reprodutivos, a escolha de engavetar uma história com esse enfoque levanta questões: até onde vai a ousadia da TV aberta? Quais limites ainda regem as narrativas que o público pode ou não assistir?
Em vez de seguir a tendência global de narrativas mais realistas e engajadas, a Globo parece ter preferido a cautela. E, com isso, abriu mão não apenas de uma trama provocadora, mas também de uma reflexão urgente: a violência reprodutiva existe e cala tantas mulheres quanto qualquer censura editorial.